Visão | Voluntários portugueses ajudam os refugiados no terreno

2022-05-14 17:23:19 By : Ms. Jenny Ni

Por estes dias Mónica Amaral prepara o seu regresso a mais uma “zona de guerra”. Nas últimas três semanas percorreu dois mil quilómetros a pé, de ferry, autocarro, comboio e até numa carrinha celular da polícia, sempre com a indignação como signo diário. Quis ir até ao Norte na Europa ao lado dos quatro refugiados que acolhera no seu quarto de hotel na noite em que desembarcaram na ilha grega de Lesbos.

“Não conseguia continuar sem saber para onde é que estamos a mandá-los e o que encontram pelo caminho”, justificava esta portuguesa na véspera de partir da Grécia.

“A maioria vem na miragem de que a Europa é o sítio onde poderão recomeçar a vida, não têm informação alguma da situação real. Entre as milícias das fações opostas na Síria, preferem o asilo prometido pela Angela Merkel. Um deles até trazia a sua fotografia no telemóvel!” No dia desta conversa Mónica estava há uma semana e meia em Lesbos, onde chegara na companhia de um bom gigante australiano chamado apropriadamente Scott Melbourne, e já sentira que não havia volta atrás. Nem para Mohamed, Ihab, Razan e Nour nem para ela e o namorado, porque nem aqueles refugiados queriam regressar a um país em guerra nem Mónica e Scott se imaginavam a ter outra vez uma vida dita normal. “Já não posso dizer que sou artista plástica”, pensou alto quando lhe perguntámos pela profissão em Portugal. “É que nunca mais vou voltar atrás, seria tempo perdido.” Faça-se aqui um parêntesis reto para lembrar que ninguém decide “agora sou artista/agora já não sou” como se o talento tivesse um botão on/off. E que por isso não nos espantámos quando começámos a receber fotografias a preto e branco tiradas por Mónica logo nos primeiros dois dias de viagem. Nelas há caras, muitas caras, há sombras lindíssimas e há um velho sírio a tocar uma espécie de alaúde que no Médio Oriente se chama ud, e logo depois há outra vez o mesmo homem a desenhar num papelinho um sapato de salto alto para explicar que era sapateiro antes de ser obrigado a fugir do seu país.

Não é preciso ter-se lido Kierkegaard para entender a angústia existencialista que levou Mónica a levantar-se do sofá aos 52 anos, deixando para trás os seus quatro filhos e a vida de todos os dias para ser voluntária em Lesbos. Na verdade, basta ouvi-la dizer: “Aquilo que determina o homem são as suas ações.” Estava farta das palavras dos políticos e daquilo que via nos noticiários e lia no Facebook quando se pôs ao caminho para ajudar os refugiados. Pensou “Basta!” e mudou a sua vida para sempre.

Agora de passagem por Lisboa, Mónica e Scott já só pensam na viagem até às “selvas” de Calais ou Dunquerque, os dois locais de onde lhes chegam os piores relatos. Tinham equacionado a hipótese de voltar a Lesbos, mas a ilha tem estado subitamente calma. Nos três dias que lá passaram depois de uma viagem à Sérvia não chegou nenhum barco da Turquia, distante apenas dez quilómetros.

Entre os muitos voluntários que se juntaram em Lesbos, a estranheza deu lugar a inúmeras suposições: Terá sido pela notícia recente de que nas fronteiras agora só deixam passar sírios, iraquianos e afegãos? Será que as autoridades turcas estão a patrulhar as praias? Ou pura e simplesmente as máfias estão com falta de barcos? Mónica não ficou para saber a resposta.

Preferiu meter-se num avião rumo a Portugal e preparar a ida para França.

“Tem que ser, tenho esta consciência de quem esteve ali dentro”, diz. “A resposta da Europa é inacreditável.” Como ela, são muitos os voluntários independentes a meterem-se nas suas tamanquinhas.

Tanto em Lesbos como ao longo das rotas de quem procura abrigo no Velho Continente, têm sido eles o grande suporte na falta de resposta suficiente por parte do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e da Comunidade Europeia. Existe, inclusive, um Refugee Volunteer Map (refugeemap.com), sempre atualizado, com pins vermelhos nos locais onde a ajuda é mais urgente (são as chamadas red zones).

São pessoas que não conseguem ficar a assistir de braços cruzados, como Ana Cancela, 35 anos, marketeer e dona de uma loja no Porto, que no final de setembro decidiu levar uma tonelada de bens para um campo na Croácia. “Uma tonelada não era nada”, admite, “mas pensei que se pudesse ajudar uma criança com frio já valia a pena.” Começou por criar no Facebook a página A Solidariedade Não Conhece Fronteiras e a resposta foi tão boa que, ao segundo dia, já havia vários pontos de recolha de donativos. Por essa altura, descobriu a iniciativa It’s Our Problem e resolveu juntar esforços, enviando todos os bens para um campo de refugiados na Macedónia.

A ideia de fazer trabalho voluntário no terreno surgiu “para validar o projeto”.

Ana não tinha qualquer experiência do género mas queria assistir à distribuição dos donativos para poder dar o seu testemunho direto nas redes sociais.

Os dois camiões com mais de trinta toneladas acabariam por ser travados nas fronteiras da Macedónia e da Sérvia por questões burocráticas, indo parar, depois de muito trabalho de bastidores, à Croácia.

Quanto a Ana, honraria o compromisso de ajudar no campo de Gevgelija, na Macedónia, e teria companhia nesses dias, estiveram com ela mais três portugueses como voluntários: Sandra, Pedro e Rita.

Em Gevgelija, um campo gerido pela Cruz Vermelha internacional e o ACNUR e com muitas ajudas de ONG’s locais, Ana Cancela assistiu ao fluxo ininterrupto de pessoas vindas da Grécia e viu como esperavam em filas para entrar e como de lá saíam mal havia um comboio pronto a partir rumo ao próximo campo, na Sérvia.

O campo estava aberto 24 horas. Durante o dia, a comida era entregue pelas ONG, mas à noite raramente havia alguma coisa para oferecer além de água.

E o frio que fazia? “A partir das quatro e meia da tarde”, conta, “o sol punha-se e era muito doloroso ver crianças e idosos a tremerem.” Nas fotos que trouxe da Macedónia, Ana aparece muitas vezes com a sua amiga Sandra Ribeiro, fotógrafa, e o bósnio Kemal Shkrijel, da associação humanitária NuN, que as recebeu como se a ajuda de ambas uma semana de trabalho voluntário fosse a coisa mais preciosa do mundo. Ele era o primeiro a emocionar-se com os refugiados, embora aconselhasse, uma e outra vez: “Deixem as emoções fora do campo.” Eis algo fácil de dizer e difícil de cumprir, percebe-se ao ouvir o animador das manhãs da Rádio Comercial Pedro Ribeiro que, depois de ajudar a desbloquear a viagem dos camiões, entregou comida, encaminhou miúdos, procurou tradutores.

“É uma gota no oceano, mas sentimos que faz a diferença.” Pedro ofereceu-se como voluntário porque não conseguia continuar a ser apenas uma testemunha das notícias. No seu blogue Dias Úteis (osdiasuteis.blogs.sapo.

pt), conta as histórias de alguns refugiados com quem se cruzou, como uma mulher da Somália que acreditava estar a apenas um dia de distância a pé da Alemanha ou um rapazinho sírio que levava a fotografia de Cristiano Ronaldo na t-shirt e, ao sabê-lo português, lhe disse: “Portugal? Me too!”.

Um mês antes Pedro vira a sua mulher, Rita Rugeroni, locutora na Rádio Comercial, partir de carro com o grupo Famílias Como as Nossas com o objetivo de trazer para Portugal famílias de refugiados.

Desta vez, não hesitou em acompanhá-la na entrega dos camiões. “Obrigada, Rita, por seres a minha Angelina Jolie. Gosto de pensar que isso faz de mim um bocadinho Brad Pitt :)”, brincou no blogue.

Em setembro, o grupo Famílias Como as Nossas já levava alguém a fazer as vezes de Angelina Jolie o apresentador de televisão João Manzarra, que decidiria juntar-se para dar visibilidade ao projeto.

Não salvou nenhum refugiado, como chegou a escrever-se em algumas manchetes de jornal, mas regressou impressionado com aquilo que viu no campo de Opatovac, na Croácia.

Com ele viajava também Rita Rugeroni, que tem muito sentido de humor mas ainda mais sentido de família. Quando a sua amiga Bárbara Guevara, locutora na M80, lhe falou no grupo de portugueses dispostos a meterem-se nos seus carros até ao norte da Europa para trazerem refugiados para Portugal alinhou imediatamente.

“Vou porque sou mãe”, disse na altura.

A viagem deixaria marcas profundas no grupo. Ninguém estava preparado para o que encontrou em Opatovac, onde entregaram alimentos, roupas e brinquedos, e viram homens, mulheres e crianças a chegarem debaixo de chuva miudinha, muitos sem um casaco impermeável, quase todos de olhar perdido.

Rita saiu de lá decidida a regressar ao terreno como voluntária, embora hoje confesse que não tinha a mínima noção daquilo que a esperava em Gevgelija.

”É assustador pensar que não há diferença nenhuma entre serem três da tarde ou duas da manhã, as pessoas estão sempre a chegar. Às onze da noite entrou um bebé de três dias, dali o comboio demora três horas até à Sérvia e depois ainda tinham muito caminho para fazer.” Será também para Gevgelija que Bárbara Guevara irá partir a 5 de dezembro, Dia Internacional do Voluntário, integrada na Caravana da Esperança, uma iniciativa da recém-criada Associação Famílias Como as Nossas. “Queremos ir para onde façamos mais falta”, justifica. “Na Macedónia não é tão pública a necessidade de ajudar.” Nas últimas semanas, a locutora, de 35 anos, tem passado os seus tempos livres no armazém de Loures onde está a ser encaixotada mais roupa doada que será enviada para o ACNUR em Tessalonica, na Grécia, e a tratar da organização da viagem. Em menos de dois meses a crise dos refugiados tomou-lhe conta da vida.

O mesmo aconteceu a Paulo Leão, 44 anos, que esta semana regressou de dois campos na Eslovénia e na Áustria, ambos numa red zone. Partiu de Lisboa com mais sete portugueses e só não trouxeram famílias de refugiados para Portugal porque encontraram os campos todos militarizados.

Na Eslovénia os elementos desta Caravana da Tolerância ajudaram na distribuição de casacos e sapatos, na Áustria estiveram na cozinha a preparar lanches de viagem. Quanto ao dinheiro que levaram, gastaram-no no supermercado. “Comprámos comida porque era o que fazia mais falta”, conta. “Num deles estavam oficialmente duas mil pessoas mas na verdade eram oito mil.”

Também Nuno Félix, 38 anos, profissional do mundo do futebol e pai de quatro filhos, vive empenhado em ajudar a minorar o sofrimento dos refugiados desde que trouxe para Portugal uma família síria. Agora que Ali Mustafa Al Khamis, a sua mulher, Nada, e as filhas, Dimas, 9 anos, Inas, 7, e Rimas, 4, estão a receber o apoio da União das Juntas de Freguesia de Ovar, passar uma semana como voluntário em Gevgelija é “fazer o que ficou por fazer”, diz. “A primeira viagem foi quase só conduzir um carro, mas com a Caravana da Esperança vamos mostrar aos refugiados que na Europa não há só gente a colocar-lhes arame farpado pela frente.” Quando Bárbara, Nuno e os outros voluntários portugueses se enfiarem no avião (neste momento estão confirmados dez) já Vera Valério Batista, 39 anos, enfermeira e psicóloga clínica, Catarina Carneiro, 33 anos, psicóloga, e Maria João Caseiro, 26 anos, enfermeira, regressaram de Slavonski Brod, na Croácia, onde estão neste momento a trabalhar com a ONG Center for Peace Studies.

Slavonski Brod é mais um campo de transição onde os refugiados ficam umas horas, dois dias no máximo, antes de voltarem a partir rumo ao norte. Abriu a 3 de novembro para substituir o de Opatovac, onde a lama já era um problema no final de setembro. Tem tendas com camas e alguns contentores para albergar famílias mais desvalidas.

Por estes dias, Vera, Catarina e Maria João fazem turnos de oito horas com mães e crianças. Nas horas vagas andarão pelas lojas do centro comercial mais próximo porque antes de partirem criaram uma conta para poderem comprar aquilo que a ONG anfitriã considerar mais urgente.

Quando Vera Valério Batista esteve com o grupo Famílias Como as Nossas em Opatovac sentiu que era preciso “instilar a esperança”, promover a sobrevivência emocional e psicológica dos refugiados.

“É importante manter o sonho acordado, o projeto de vida, além do pão para a boca”, diz. Em Slavonski Brod tem sido toda ouvidos, abraços, brincadeiras, canções. “Estamos disponíveis”, resume.

No bolso, as três portuguesas têm para oferecer aos refugiados pins com a frase People Need People para lembrar-lhes que há europeus dispostos a ajudá-los e que é uma relação nos dois sentidos.

“Estamos a ajudar pessoas que sofrem, mas nós também vamos ficar riquíssimas com tudo isto.”

“Não é preciso nada de especial para ser voluntário”, dirá Leonel Carrilho, acabado de chegar a casa, perto de Brighton, no Reino Unido, onde mora desde 2008. “Basta um par de mãos para ajudar.”

Técnico de eletrónica, de 43 anos, dedicou oito dias a trabalhar na Starfish Foundation, criada pela australiana Melinda McRostie, em Lesbos. Durante essa semana, desdobrou-se entre o porto de Mytilene, a praia de Eftalous e o abrigo de Oxi, coincidindo com Ana Alegria, que mora na Arábia Saudita, e Ana Sousa, de Santa Maria da Feira. Havia sempre muito que fazer, sobretudo em Oxi, onde os refugiados têm roupa, comida e a hipótese de dormirem numa cama antes de seguirem de autocarro para Moria, o único campo onde são registados pela polícia.

Foi há um ano que Melinda decidiu fazer alguma coisa pelas pessoas que todos os dias desembarcavam junto ao seu restaurante, Captain’s Table, um trabalho que hoje só é possível com os muitos pares de mãos que a procuram. Leonel apareceu-lhe de surpresa numa manhã, por sorte à hora da reunião em que os voluntários ficam a saber o turno e o local que lhes calhou.

O português reservou quarto num hotel, alugou um carro em que dava boleia até Oxi quando não havia autocarro (é proibido mas só há dois polícias em Molyvos.) e pediu para não dar com crianças mortas. “Era o meu maior medo, talvez porque também sou pai”, confessa.

Não viu crianças, mas junto a umas rochas encontraria um jovem rapaz morto, provavelmente um afegão que viajara num barco que naufragara quarenta e oito horas antes.

“Positiva” e “intensa” são os adjetivos comummente usados pelos voluntários para caracterizar a experiência de ajudar os refugiados. Leonel acrescenta-lhe uma expressão de origem anglo-saxónica “montanha-russa de emoções” e ilustra o que acaba de dizer com a descrição de um dos muitos desembarques a que assistiu em Lesbos: “As crianças e as senhoras vêm a chorar, os homens saltam para a água julgando que não é fundo e ficam todos encharcados. Estão felizes por chegarem sãs e salvas mas em choque.”

Na primeira noite em Lesbos, Mónica e Scott, outra vez eles, distribuíram as dezenas de gorros de lã que tinham levado na bagagem. Nas noites seguintes, andaram à cata de cartão nos contentores de lixo dos supermercados para protegerem os refugiados que dormiam ao relento. Uma tenda para seis pessoas custavam 50 euros nas lojas dos chineses e esgotavam com regularidade.

Numa dessas noites, os dois passaram por aquilo que pensaram ser uma pilha de lixo com restos de mantas térmicas.

Mas a pilha tossiu. Ali estava uma família inteira, pai, mãe e três filhos, que Mónica e Scott acabaram a cobrir com cartão.

Ter-lhes-ido sido útil o abrigo para refugiados com que o ateliê Cross Hands Architecture, das jovens arquitetas Joana Lacerda e Ângela Pinto, e da economista Liliana Soares, ganhou um prémio nas Nações Unidas. O protótipo já existe e está neste momento a ser recheado de bens que as três portuenses querem enviar precisamente para Lesbos. É também na ilha grega que vão estrear a C.H. Human Box, uma mochila que se monta como um origami, com um painel solar numa das faces e capacidade para levar os produtos de sobrevivência necessários à caminhada rumo ao Norte.

Na véspera do encontro com a família feita pilha de lixo, Scott reparara num homem a pedir meias a uma voluntária que distribuía roupa de criança à hora do almoço. Depois de servir as refeições, o australiano deu-lhe a sua própria camisola e as meias que calçara de manhã. “Ele protestou, como se costuma fazer antes de aceitar”, contou na sua página no Facebook.

“Mas quando nos olhámos nos olhos percebi que os dele estavam marejados de lágrimas, por isso assenti rapidamente com a cabeça e fui-me embora antes que nos desmanchássemos os dois.” Mónica também tem relatado no Facebook a sua experiência como voluntária, aproveitando para denunciar tudo aquilo que vê e deplora. Ao telefone, junta pormenores arrepiantes. Um deles foi-lhe contado por Mohamed, o sírio a quem deram guarida: à saída da Turquia, elegeram-no de pistola apontada à cabeça para piloto do barco. Outro viu ela numerosas vezes: os motores a desaparecerem na confusão do desembarque. “Os greek boys, três gangues que partilham a costa, vendem-nos de volta à máfia turca, a 200 euros a peça.” Tudo isto ela conta só para que o mundo saiba o que está a acontecer. Quem a conhece não a imagina em bicos dos pés.

“Nós estamos aqui para servir, não somos heróis nem nada de especial, fazemos somente o que devemos”, diz. “Os heróis são os refugiados porque esses, sim, arriscaram tudo para aqui chegarem.”

Em Lesbos, o sírio Mohamed e a mulher, Razan, com o palestiano Ihab e o seu sobrinho, Nour, eram os primeiros a quererem ajudar. Um dia, Mónica chegou ao hotel e encontrou o relvado coberto de roupa tinham-na recolhido nas praias e lavado na casa de banho do quarto para poder ser usada por outros refugiados.

E porque não?, pensou também Isabel Andrade pouco tempo depois de chegar à ilha. Para esta enfermeira reformada, de 67 anos, não fazia sentido medir os valores de hipotermia a quem acabara de desembarcar quando não tinham roupa seca para vestir. Por isso, nos seus pouquíssimos tempos livres ia para o apartamento lavar roupa que ficara para trás.

Isabel pertence à Igreja Adventista, tal como o contabilista José Colaço e o enfermeiro Emanuel Garcês, com quem viajou até Lesbos no final de outubro. Nunca se metera numa missão do género e, agora que já regressou a Silves, não se arrepende nem um bocadinho das 16 horas por dia que trabalhou. Mas também não se esquece da aflição logo na primeira noite.

“Já passava da meia-noite quando começámos a ouvir o helicóptero que sobrevoa a costa sempre que há barcos a chegar.

O mar estava muito picado e durante o dia tinham morrido sete pessoas.” A imagem nunca varia muito: homens e rapazes sentados nos bordos e mulheres e crianças no meio do barco, que vem quase sempre a meter água. “Chegam num estado lastimoso”, conta. “Mulheres com gravidezes de termo encharcadas até ao pescoço e crianças vestidas com três e quatro mudas de roupa mas ainda assim em hipotermia.” Durante oito dias, os três portugueses pouco saíram da zona de desembarque, no nordeste da ilha. Skala Sykaminea é uma aldeia piscatória que tem apenas uma padaria e todos os dias é visitada por um vendedor ambulante a quem José Colaço comprava legumes e fruta. Era preciso alimentar a equipa, que comia quando calhava porque estava sempre de chamada três portugueses, dois sul-africanos e um alemão, a que se juntaram espontaneamente mais quatro médicos, do Chile, América e Suécia.

José pertence à ASI Portugal, uma associação adventista de empresários e profissionais liberais que promove projetos humanitários. Mal soube da hipótese de voluntariado em Lesbos, avançou logo.

“Acredito no princípio da solidariedade e no dever de servir o próximo”, justifica.

É ele quem explica que a ASI Europa recebeu um donativo para ser utilizado no alívio da crise dos refugiados na Hungria.

Dada a posição do governo húngaro, optaram por Lesbos e, através da Igreja, enviaram para lá um autocarro-clínica.

Emanuel, enfermeiro no Hospital de Beja, só conseguiu viajar recorrendo à legislação que protege o voluntariado em Portugal se uma pessoa for imprescindível para o êxito da missão numa situação de catástrofe ou emergência humanitária, a entidade patronal é obrigada a garantir o seu salário [Lei n.° 71/98 (alínea e) do art.° 7.°) e Decreto-Lei n.° 389/99 (alínea b) do art.° 13.° e art.° 14.°)]. Foi a primeira vez que fez valer o estatuto do voluntário, depois de várias missões humanitárias.

Lesbos impressionou-o ainda antes de saber que havia de lá ir. “Quando vemos crianças a dar à costa afogadas sentimos que é preciso fazer alguma coisa.

Temos de salvar estas pessoas, acima de tudo está o valor da vida humana.” Mas nada o preparara para o que passou em termos emocionais, nem os anos que esteve a trabalhar em oncologia pediátrica.

“Foi a pior coisa que me aconteceu na vida”, diz, na ressaca da experiência.

“Ainda não passo um dia sem pensar quantos barcos terão chegado hoje. Não sou piegas mas chorei sempre que um grupo chegava. Ver o pânico, o medo, a ansiedade das pessoas…”

Emanuel Garcês esteve uma semana na primeira linha e só teve tempo para visitar rapidamente o campo de Moria, na altura todo um outro drama. “Parece um campo de concentração”, compara, por causa das cercas altas, encimadas por arame farpado.

Durante as cinco semanas em que ali trabalhou como voluntária, a distribuir roupa e outros bens essenciais, Sara Sofia Almeida arrepelou-se com a falta de tudo: sombra, luz elétrica, informação.

“O processo de registo tem um sistema de senhas complexo e os polícias não explicam nada.” Designer de produto, Sara viajava pela Ásia com o namorado, Jack, um fotógrafo inglês, quando decidiu oferecer-se para ajudar os refugiados. No dia em que a CNN passou imagens de Aylan morto na praia, estava prostrada no quarto de um hotel no Laos com uma intoxicação alimentar e ficou impressionada.

Ao fim do primeiro dia no terreno, com os Médicos do Mundo, justificava a ida para Lesbos no seu blogue: “Esta é uma guerra combatida por pessoas como tu e eu. Não é por super-heróis. E não é uma questão política porque eu podia ser contra a entrada de refugiados na Europa e ainda assim estar aqui. É sobre seres humanos a precisarem de ajuda.” Ao longo das cinco semanas houve dias bons e dias menos bons. Um dia bom (e Sara sente-se culpada por usar o adjetivo) era quando os dois se riam à gargalhada com os cintos de ligas ou cuecas de fio dental que encontravam entre a roupa doada aos refugiados; um dia menos bom foi quando o primeiro-ministro grego visitou Moria, a polícia encaixou a maioria dos refugiados na parte de cima do campo e algumas pessoas que estavam cá fora começaram a desmaiar com o calor.

Quando correu o boato de que os que entravam em braços passavam à frente na fila, desatou tudo a tentar saltar a cerca, cortando-se no arame farpado.

Agora que já regressou a casa, em Inglaterra, Sara prepara-se para ir a escolas falar da sua passagem por Lesbos. Muito provavelmente terminará essas conversas confessando que quer tornar-se paramédica.

A experiência de voluntariado mudou-lhe o rumo de vida.